“Only the lonely know the way I feel tonight”
(Roy Orbinson)
À noite, os corações solitários me procuram. Como se eu pudesse consertá-los. Como se eu mesma não estivesse em pedaços.
Boa noite, ouvintes. É meia-noite. Está começando o Clube dos Corações Solitários, eu sou a Clarice, sua companhia na madrugada. Faço uma pausa, tentando reunir o que resta de mim. Que tal começarmos a noite com Space Oddity, de David Bowie? Talvez alguém lá em cima esteja ouvindo também.
Desligo o microfone, acendo um cigarro. A música preenche o estúdio. Na mesa, uma xícara de café esquecida ao lado de papéis e rabiscos. Bowie canta sobre solidão e despedidas. Sua voz parece mais próxima do que qualquer outra coisa. “And the stars look very different, todaaaay”.
Sou uma pessoa noturna. Sempre fui. Há algo no silêncio dessas horas que me conforta, como se o mundo finalmente diminuísse o ritmo. O estúdio vazio, a liberdade de comandar o programa sem o incômodo dos comerciais, é um lugar onde me sinto à vontade.
Por outro lado, recebo pouco por isso. Talvez menos do que deveria. Mas nunca me importei. O peso das vozes que chegam até mim vale mais do que qualquer pagamento. Elas me procuram porque precisam ser ouvidas, e talvez porque, em algum nível, sabem que entendo.
Ajeito o fone. Balanço o corpo no ritmo da música. O relógio digital pisca, o letreiro No Ar brilha no canto do estúdio. Sei que há alguém na linha. Deixo tocar. Ainda não estou pronta. A música termina. O silêncio é breve, exato. Ativo o microfone, minha voz retorna. Doce, precisa: Olá, alguém na linha?
No início, só havia música. O programa era simples, quase mecânico. Stones, Pink Floyd, Rush. Eu preenchia as madrugadas com canções cafés e cigarros. As ligações eram poucas, como ecos perdidos na noite. Mas, aos poucos, as vozes começaram a surgir. Mulheres exaustas, vozes quebradas. Julianas, Renatas, Denises. Talvez tenham encontrado em mim algo raro, algo que não encontram em outros lugares: um silêncio que ouve sem pressa, sem julgamento.
Não pedem conselhos; procuram companhia. Falam de maridos que não voltam, trabalhos que nunca terminam, culpas que nem sabem nomear. Algumas hesitam antes de falar, como se temessem que suas palavras pudessem se perder no ar. Uma delas, certa vez, disse: Só queria que ele sumisse. E eu entendi que, muitas vezes, elas só precisam de um espaço onde a dor não precise ser explicada, onde o peso que carregam não precise ser justificado. Talvez, no fundo, saibam que eu também carrego o meu.
A primeira ligação da noite. Voz baixa, um sussurro que tenta ocultar uma angústia. Fala de medo, de um namorado violento. Diz que sente como se estivesse enlouquecendo. Fecho os olhos enquanto escuto, tentando absorver o peso em cada palavra. Algo nesse tom abafado que ecoa em mim, como um grito preso. Não é só ela. É uma dor antiga, coletiva. O cansaço de andar pelas ruas com passos apressados, de medir cada palavra em conversas triviais, de calar quando a voz não cabe. Não é apenas o namorado ou a violência. É o cansaço de viver em alerta, como se o mundo inteiro fosse um território hostil. Respondo com o que parece verdadeiro. Digo que é preciso resistir, mas sei que elas já resistem todos os dias, em silêncios que ninguém percebe.
Nos despedimos, mas as palavras dela ficam. Ecoam no estúdio, se misturam à música que escolho para preencher o vazio: The Sound of Silence: “Hello darkness, my old friend…”. Essa letra sempre me pareceu íntima demais, como uma carta escrita por alguém que me conhece melhor do que eu gostaria.
Assim é meu programa. Músicas tristes, mulheres exaustas. Elas falam, eu ouço. Registro suas dores. Penso que ouvir seja apenas outra maneira de existir. Talvez seja o bastante. Talvez não. Algumas pedem músicas específicas. Presto atenção nos títulos, às vezes nas letras. Parecem pedidos, gritos de socorro. Help! dos Beatles. I Want to Break Free do Queen. Mensagens veladas que anoto nos meus papéis rabiscados.
Quando volto pra casa, Clarice se dissolve. É Aurora quem toma seu lugar. No quarto, o laptop está pronto, a webcam ajustada. A música é vibrante, quase agressiva, às vezes sensual, acompanhando o ritmo da performance. Luzes artificiais e uma tela vazia, aguardando o espetáculo. Aurora brilha na luz, enquanto Clarice desaparece no silêncio.
Vendo meu tempo. Meu corpo. Mas cobro caro. E eles pagam. Homens que acham que podem comprar tudo, como se o preço justificasse o vazio que carregam. Carregam um desejo sem forma, incapazes de colocá-lo em palavras, mas Aurora não dá nada de graça.
Os homens surgem do outro lado com nomes inventados, carregando mais disfarces do que histórias. Não buscam uma voz, mas uma presença que preencha o vazio sem confrontá-los. Uma carência disfarçada, oculta em sorrisos curtos e pedidos previsíveis. Não entendem o medo de tantas Anas, nem a frustração de Julianas. São incapazes de sentir o desamparo de Renatas ou a exaustão de Denises. Fingem leveza, mas trazem urgências que só existem em suas cabeças.
Hora do show. Começo vestida, recebo pedidos — às vezes ordens. Vou me revelando, exibindo meu corpo. Peças íntimas retiradas sensualmente. Me masturbo. Às vezes, finjo o prazer enquanto minha mente retorna às histórias de mais cedo. Relatos marcados por medos, abusos e cobranças sem fim. Um peso invisível que se acumula e nunca se desfaz. Eles assistem ao que ofereço, mas não enxergam o que trago comigo.
Aurora existe para ser vista. Clarice, para ouvir. Eu sou o intervalo entre as elas, um espaço vazio que nunca se preenche. Vivo entre dois papéis que inventei para não ser esmagada pelo peso do mundo.
Às vezes, a interação virtual não é suficiente, e eles pedem mais. Alguns me chamam a atenção. Um olhar mais demorado, uma frase inesperada. Há algo neles que me intriga, que parece pedir para ser escolhido. Eu apenas sigo o instinto.
Os encontros seguem um padrão. Uma troca de mensagens, a sugestão do meu apartamento como refúgio discreto. Eles chegam com flores ou elogios previsíveis. Eu observo: o tom de voz, a escolha do vinho, os gestos inquietos. O jantar é um jogo, as palavras circulam sem rumo. O sexo é preciso, meticulosamente calculado. Entrego minha melhor performance, como um escritor que oculta a verdade em cada frase, guiando a trama a um desfecho inevitável. Eles nunca percebem que o final já estava escrito.
Na mesa, uma taça de cristal. Uma gota de vinho ainda escorre pela borda, tingindo o branco do guardanapo dobrado com um vermelho escuro, quase negro. Há um momento, breve e definitivo, em que tudo se revela. Uma dose sutil, letal. Eu os observo enquanto desmoronam, como se o peso invisível que carregavam finalmente os abandonasse. Seus olhos, atônitos, encontram os meus, congelados no instante em que a vida se esvai.
Por fim, outro coração encontra o vazio, e o ciclo recomeça. O vinho derramado forma uma mancha que se espalha lentamente pelo chão. O silêncio é profundo, quase tangível. Talvez seja isso que me define: não quem eu sou, mas o que sobra depois que eles se vão.